“Nego véi, pode faltar tudo, menos a nossa farinhazinha. A gente come no café, no almoço e na janta. É bom demais!” É assim que a dona de casa Maria Auxiliadora Araújo define de maneira bem humorada a presença marcante de um dos alimentos mais consumidos e apreciados pela população de Cruzeiro do Sul, a segunda cidade mais populosa do Acre e famosa nacionalmente pela produção da iguaria derivada da mandioca ou macaxeira, como também é conhecida na região.
No Mercado Municipal Beira-Rio, não importa a hora, o vai e vem de pessoas é constante. O local é uma das principais referências de compra e venda de farinha. O movimento começa antes mesmo do raiar do dia, quando os sacos do produto, que pesam 50 quilos, chegam em veículos ou embarcações das mais diversas comunidades rurais e ribeirinhas dos cinco municípios do Vale do Juruá para abastecer o comércio.
Rodeado de tonéis abarrotados de farinha e com a característica lata de um litro na mão, a medida mais utilizada para a venda em pequenas quantidades, o popular retalho, Eulisson Lima, o Siri, tenta chamar a atenção dos clientes ao dizer que possui o melhor produto da cidade. Do ponto herdado do pai, há uma década, ele tira o sustento da família. A depender do movimento, entre cinco e dez sacos são vendidos, diariamente.
“Vem gente de todo canto comprar farinha aqui comigo. Tenho clientes até em São Paulo, que encomendam e levam. O produto que eu vendo é de excelente qualidade e o pessoal gosta muito. A farinha tradicional da branca é a que mais sai”, explica o comerciante.
A cada dois meses, Leonardo Correia renova o estoque de farinha dele e da irmã, que mora em Rio Branco. De uma só vez, ele fez a compra de 25 quilos do alimento. “Igual essa farinha não tem, tanto é que a minha irmã não compra farinha na capital porque muita gente vende lá dizendo que é de Cruzeiro do Sul e não é. Ela pede para eu comprar daqui e mandar para lá”, revela.
No restaurante de Antônio Evangelista, a farofa não pode faltar entre as guarnições servidas juntamente com o churrasquinho. Por semana, cerca de 150 quilos do produto são consumidos no estabelecimento. “É praticamente um item obrigatório e os nossos clientes pedem muito. Todo bom acreano adora uma farinha, né?”, comenta.
A farinha de Cruzeiro do Sul se aperfeiçoou após a chegada dos primeiros migrantes, principalmente cearenses, que fugiam da Grande Seca do Nordeste, entre os anos 1877 e 1880, quando o Brasil era um império e o atual território do Acre pertencia à Bolívia e ao Peru. Milhares de retirantes vieram para a Amazônia impulsionados pela promessa de uma vida próspera e farta a partir do trabalho de extração do látex das seringueiras. Mas a realidade da época era outra, repleta de dificuldades.
Os nordestinos trouxeram seus hábitos e costumes alimentares, entre eles a produção da farinha. A troca de conhecimentos com os indígenas locais, que já plantavam e consumiam mandioca, aliada à junção de novas técnicas e etapas ao modo de preparo, entre outras adaptações rudimentares, foram responsáveis pelas características inconfundíveis deste alimento produzido no extremo oeste do país.
“O que aconteceu no fim do século XIX foi a fusão das culturas indígena e nordestina. A mandioca já era um alimento bastante consumido pelos nossos indígenas, mas diferente dos nordestinos, eles não possuíam a técnica de produzir farinha. Foi um começo bastante complicado e com muitos ajustes, que acabaram dando certo e resultaram neste produto que conhecemos hoje”, acrescenta Joana Leite, pesquisadora da área de Ciência e Tecnologia de Alimentos da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).
Após o fim do Primeiro Ciclo da Borracha, o principal produto da região entrou em decadência e novas alternativas econômicas ocuparam espaço, entre elas a fabricação de farinha. Com uma qualidade bem superior às demais, o alimento despontou e ganhou cada vez mais fama, espaço no mercado e caiu no paladar das pessoas ao longo dos anos.
Por toda a sua história, a farinha de Cruzeiro do Sul se tornou um verdadeiro patrimônio nacional. Para chegar até a mesa dos consumidores, o alimento percorre um longo processo. Desde o plantio da mandioca até o produto pronto para consumo são, aproximadamente, nove meses. A mágica acontece nas chamadas casas de farinha, onde todo o processo de feitio é concentrado. Um trabalho familiar, que ultrapassa gerações.
No Ramal do Pentecoste, zona rural de Mâncio Lima e uma das maiores comunidades produtoras do Juruá, os casais Marina Oliveira e Raimundo Batista, e Mírian Oliveira e José Batista se ajudam na farinhada, como eles chamam a produção de farinha. As irmãs e os cunhados estabeleceram entre si uma forma bem peculiar para arcar com a mão de obra.
“Essa mandioca vai render uns sete sacos. Se trabalhar somente duas pessoas, fica muito cansativo e não damos conta do serviço. Então, a gente chama eles [o casal] para nos ajudar a produzir a nossa farinha. Quando é a vez deles, a gente vem e ajuda com o nosso trabalho. É assim que a gente se paga”, exemplificou José Batista.
Após ser arrancada do solo, a mandioca é logo levada para a casa de farinha, onde é colocada em um equipamento chamado bolador. Nesta etapa, são retiradas a maior parte das impurezas, como o excesso de terra e as folhas. Em seguida, a raízes são descascadas manualmente e postas em reservatórios de água misturada com cloro para serem lavadas e evitar contaminação.
Do lado de dentro da casa de farinha, a mandioca passa pela primeira trituração, é prensada para a retirada da manipueira (líquido tóxico presente na raiz), é triturada novamente, peneirada, torrada no forno, peneirada pela segunda vez e, finalmente, levada para a secagem. Todo o processo leva, em média, mais de 30 horas.
A casa de farinha e a área de terra de 12 hectares destinadas ao mandiocal são compartilhadas por seis famílias. Entre os mais de 20 tipos de mandiocas plantados na região, a preferência deles é pela Branquinha e a Manso Brava. “São as melhores da gente trabalhar e as que rendem mais na hora da farinhada. Aqui é uma produção 100% familiar, de onde a gente sobrevive”, justificou Raimundo Batista.
Mas, afinal, o que faz a farinha de Cruzeiro do Sul tão saborosa e especial? Marina não hesita ao responder. “O nosso diferencial é fazer as coisas com amor e carinho. Essa farinha não é feita de qualquer jeito, temos todo um cuidado na hora de fazer, para que não fique uma farinha ruim. Muita gente produz pensando em quantidade. Nós preferimos a qualidade”, disse.
Ao ser questionado sobre o mesmo assunto, o presidente da Cooperativa de Produtores de Farinha do Vale do Juruá (Cooperfarinha), Sebastião Nascimento, o Tiãozinho, prefere manter o mistério. “É um segredo só nosso”, resumiu.
Para a pesquisadora Joana Leite, que acompanha a cadeia produtiva da mandioca desde 2000, o que torna a farinha de Cruzeiro do Sul única é o modo de preparo. “Temos esse produto no Brasil inteiro, mas os sabores, texturas e crocância são completamente diferentes, porque cada lugar faz do seu próprio jeito. Aqui no Acre, especialmente no Juruá, essa tradição de mais de um século, onde o processo de fabricação é praticamente o mesmo, e que é passado de pai para filho consolidou o modo de saber”, pontuou.
Em 2017, a farinha de Cruzeiro do Sul alcançou uma conquista histórica, ao se tornar o primeiro produto brasileiro derivado da mandioca a obter o selo de Identificação Geográfica (IG). Todas as qualidades do alimento foram reconhecidas por meio de marca registrada no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi), órgão federal ligado ao Ministério da Agricultura e Pecuária.
“O registro de Identificação Geográfica é concedido aos produtos que possuem notoriedade e fama junto aos seus consumidores. Dentro deste selo, temos a Identificação de Origem, que leva em consideração o ambiente onde os produtos são feitos, e a Indicação de Procedência, que é a tradicionalidade no modo de saber fazer, mesmo com o passar do tempo, como é o caso da farinha de Cruzeiro do Sul”, define Joana.
Durante dez anos, várias instituições governamentais e não-governamentais realizaram estudos, pesquisas e ações juntamente com os produtores para atestar os diferenciais e a regionalidade da farinha. Além de Cruzeiro do Sul, a certificação abrange os municípios acreanos de Mâncio Lima, Marechal Thaumaturgo, Porto Walter e Rodrigues Alves.
Há décadas, a farinha de Cruzeiro do Sul sofre com a pirataria. Produtos que sequer são feitos no Juruá se apropriam da fama e comercializam o alimento como se fosse da região. “Isso é muito ruim para nós e só traz prejuízo. Qualquer empresa faz uma embalagem, coloca o nome e vende como se fosse a nossa”, opina o produtor Manoel Nunes.
Detentora exclusiva do registro, apenas a Central de Cooperativas do Juruá está legalmente autorizada a utilizar a marca Farinha de Cruzeiro do Sul. “Essa foi uma grande conquista para nós no combate à pirataria. Já estamos verificando a possibilidade de acionar na justiça quem continuar usando o nome indevidamente”, admitiu a presidente da entidade, Maria José Maciel.
Grande parte dos investimentos de padronização e automação das casas de farinha são provenientes de recursos públicos. A Secretaria de Estado de Indústria, Ciência e Tecnologia (Seict) planeja continuar a expansão do projeto.
“Temos procurado estimular a industrialização no Acre e sabemos que as agroindústrias são fundamentais neste processo de geração de riqueza e criação de postos de trabalho. Estamos trabalhando na captação de novos recursos para que possamos montar mais casas de farinha automatizadas no Juruá em outras regiões do estado”, frisou Assurbanipal Mesquita, gestor da Seict.
Por meio do Mecanizar Mais, programa executado pela Secretaria de Estado de Agricultura (Seagri), a cadeia da farinha terá mais acesso a equipamentos agrícolas, que são fundamentais para o aumento da produtividade da mandioca.
“Sabemos que a demanda por farinha é muito grande em nosso estado e a mecanização chega para potencializar a produção. Já temos 32 casas de farinha mapeadas na região do Juruá que a Seagri entrará com maquinário para ajudar os nossos produtores”, confirmou José Luís Tchê, titular da pasta.
A farinha de Cruzeiro do Sul terá espaço garantido e de destaque na 48ª edição da maior feira de negócios e entretenimento do estado. O público da Expoacre 2023 vai ter a oportunidade de acompanhar o processo de fabricação do alimento.
“A Expoacre é a nossa maior vitrine de negócios e, por toda sua importância, a farinha de Cruzeiro do Sul não poderia ficar de fora do evento. Sou filho do Juruá e sei o quanto esse produto ajuda no sustento de milhares de famílias e tanto contribui com a economia do estado”, afirmou o governador Gladson Cameli.
O projeto da Indicação Geográfica da farinha de Cruzeiro do Sul é acompanhado pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae). Dois consultores da instituição realizam assessoramento técnico de 60 produtores locais. O início foi marcado pela desconfiança e resistência por quem estava a acostumado com o método tradicional há muitos anos.
“Eu fiquei olhando aquele pessoal querendo ensinar fazer farinha para quem mexe com isso desde que se entende por gente. Mas acabei entendo que a ajuda do Sebrae está sendo muito importante para nós. Estamos aprendendo muito com eles”, constata Maria José.
Há um ano, Elias Neto presta consultoria aos produtores. “Nosso objetivo é promover, desenvolver e fomentar essa cadeia produtiva por meio de ações do Sebrae voltadas à gestão do empreendimento, assistência técnica desde o plantio até a unidade de beneficiamento e capacitações. Sabemos do potencial econômico da farinha e o nosso desafio é que a partir do selo de Identificação Geográfica, possamos auxiliar as famílias a agregarem mais valor ao produto”, defende.
Há um ano e meio, a primeira casa de farinhada automatizada começou a entrar em funcionamento na Comunidade Pentecoste. O espaço conta com equipamentos motorizados, cercamento, forro e tela para evitar a entradas de insetos e animais, piso em alvenaria, água encanada e se diferencia, principalmente, pela adoção de várias medidas sanitárias e de higiene durante o processo de produção.
Com estes investimentos, o local foi transformado em agroindústria, assegurando mais qualidade ao alimento. A primeira delas pertence a Maria José. Mais conhecida como Véia, a produtora lembra das dificuldades que enfrentou durante a maior parte da vida em uma casa de farinha tradicional, onde o trabalho é manual e extremamente exaustivo.
“Era muito sofrido quando tinha farinhada grande. A gente começava a trabalhar uma hora da manhã e pegava direto até três horas da tarde. Ficar em pé durante horas pegando a quentura do forno não é vida para ninguém. Graças a Deus, hoje está bem melhor e mais rápido. Agora, começamos sete horas da manhã e, no mais tardar, duas da tarde está tudo terminado”, conta.
A agroindústria não só proporcionou mais qualidade de vida aos trabalhadores, como fez dobrar a produtividade. De 25 sacos mensais, a capacidade agora é de 50 sacos, com potencial de elevar esse número. Outro detalhe muito importante: o padrão de sabor, textura e crocância ficou ainda melhor.
Maria José também foi pioneira na venda com o selo de Identificação Geográfica. A farinha que ela produz obedece a todos os critérios obrigatórios de segurança alimentar e controle de qualidade exigidos para o uso da certificação. Atualmente, 95% de sua produção atende clientes em Curitiba (PR), Manaus (AM) e São Paulo (SP). Enquanto o saco de 50 quilos é comercializado localmente por R$ 220, a agricultora recebe R$ 500 pela mesma quantidade.
“Estou muito feliz e satisfeita com essa nova realidade. Agora, a nossa luta é que outros produtores também consigam vender sua farinha nesse valor. Só quem mexe com isso sabe o trabalho que dá e depois de tantos anos, eu estou vendo a gente ser reconhecido por toda dedicação de fazer uma das melhores farinhas do Brasil”, salientou.
O aumentou da produção e o valor agregado estão mudando a realidade econômica da família. A renda mensal passou de R$ 5 mil para R$ 10 mil. Sonhos que anteriormente eram quase impossíveis de serem realizados, estão cada vez mais próximos de se tornarem realidade.
“Já comprei mais terras para aumentar o plantio de mandioca e em 2024, vamos fazer a nossa casa de alvenaria com piscina e comprar uma caminhonete”, revela a produtora, empolgada com a nova realidade financeira.
Com o aumento da demanda, Maria José e o esposo Manoel não estão mais dando conta sozinhos. Eles precisaram contratar mais pessoas para ajudar na produção. A agroindústria é responsável pela geração de cinco postos de trabalho. Há sete meses, parte da renda familiar das diaristas Alvilene Ramalho e Sara Santos é obtida com descasca da mandioca.
“Antes daqui, eu só cuidava da minha casa. Quando a Véia me chamou, fiquei animada e gosto muito do que eu faço. O dinheiro que ganho aqui ajuda a pagar minhas continhas e comprar minha feira do mês”, expõe Alvilene.
“Consigo ganhar uma média de R$ 700, por mês. Esse dinheiro tem sido muito importante para sustentar os meus três filhos. Já me acostumei com esse serviço e quando não tem mandioca para descascar, a gente fica aperreada querendo trabalhar”, citou Sara.
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