Assegurar políticas públicas estruturantes e efetivas de combate à fome, buscar a soberania alimentar com a construção de sistemas alimentares saudáveis e justos, alimentando cinco milhões de brasileiros. Esse é o objetivo da Missão Josué de Castro, apresentada nesta segunda-feira (11) durante audiência pública da Comissão de Direitos Humanos (CDH).
A divulgação foi feita por representantes dos movimentos sociais, do governo federal e pesquisadores para alertar sobre a necessidade de se priorizar o combate à fome na agenda política. Para dar mais simbolismo á audiência, os representantes dos movimentos sociais colocaram pratos vazios sobre a mesa dos trabalhos. Posteriormente, os utensílios foram usados para exibir alimentos produzidos pela agricultura familiar e o Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST).
A missão, que nasceu como resultado da mobilização dos movimentos sociais, tem o propósito de alimentar cinco milhões de pessoas a partir de sistemas alimentares de base familiar, camponesa, agroecológica, solidária e com o estabelecimento de circuitos curtos de abastecimento.
O presidente da CDH e propositor da audiência pública, senador Paulo Paim (PT-RS), alertou para o cenário de fome no Brasil. Para ele, é inadmissível que mais de 60 milhões de brasileiros vivam na pobreza, e cerca de 12 milhões na extrema pobreza, enquanto o país se coloca como o maior produtor e exportador de alimentos no mundo.
— A mensagem de Josué ecoa no centro da consciência coletiva. A fome não é um acidente, mas sim uma manifestação de silêncios deliberados e portanto de injustiças estruturais. Ele nos desafia a questionar as causas dessa conspiração de silêncio que perpetua a fome instigando-nos a agir com coragem e determinação — disse Paim, referindo-se a Josué de Castro (1908-1973), médico, escritor, geógrafo, cientista social, político e diplomata, que se notabilizou por estudos e esforços voltados ao combate à fome.
A representante da FASE, do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), Maria Emília Lisboa Pacheco, reconheceu a importância da retomada dos conselhos, pelo governo federal, o que, na avaliação dela, vem reforçando as ações de defesa de uma plataforma mundial de combate à fome. Ela disse esperar que a a missão seja uma resposta para a construção da soberania alimentar aliando políticas que incentivem a agroecologia, a preservação ambiental promovendo justiças ambiental, alimentar e social:
— É preciso refletir de forma crítica porque é preciso ver que essa produção baseada em monocultivos e da destruição do meio ambiente não pode nos dizer que estamos alimentando o mundo. Todo o tempo nós temos que nos perguntar o que estamos ou o que não estamos comendo. Nessa complexidade é preciso associar a relação entre saúde, meio ambiente e alimentação. São interdependentes para garantir a justiça social, a justiça ambiental e alimentar.
Entre outras ações que estruturam a Missão Josué de Castro a plataforma engloba a articulação de uma ampla rede popular de abastecimento e acesso alimentar; a construção de infraestrutura produtiva, de processamento e integração logística; a transição energética e carbono positivo; capacitação e inovação social e tecnológica; elaboração e efetivação de uma estratégia de comunicação, cultura e arte; eficiência na gestão e governança.
Os participantes enfatizaram que para ser efetiva, além da ampla participação social, a missão precisa ter conexões com o poder público. Eles observaram que a fome no Brasil e no mundo possui raízes estruturantes, é resultado de um processo econômico e social que exclui e mata, sendo a concentração de terras a principal causa desse cenário. Dados apresentados pelos participantes indicam que 77% das terras agricultáveis no Brasil estão em propriedade do agronegócio.
— A sociedade em que vivemos, a agricultura hoje tem novas complexidades. Nós precisamos ligar alimento à saúde, nós precisamos olhar para a crise climática, nós precisamos não só produzir comida, mas produzir ar puro, água pura. E o projeto de alimentar cinco milhões, a Missão Josué de Castro, procura integrar holisticamente um conjunto de políticas públicas que interajam entre elas — defendeu Frei Sergio Antônio Gorgen, coordenador nacional do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA).
Na opinião dos debatedores, essa política pública de combate à fome no Brasil também precisa estar atenta à diversidade da composição da cesta básica, a garantia das isenções tributárias desses itens, como também oferecer uma legislação que viabilize o acesso a produtos mais saudáveis e naturais contra qualquer benefício à produtos industrializados e processados.
— No Brasil, o consumo desses alimentos [processados] vem aumentando nas últimas décadas e mais intensamente entre as famílias de menor renda. É importante ressaltar que a partir de 2023 esses produtos já são mais baratos do que alimentos frescos no Brasil, como carnes, leites, frutas, entre outros. E tal fato tem consequências desastrosas para o Estado e para a sociedade brasileira. Apenas o excesso de peso, uma das condições diretamente ligadas ao consumo de ultraprocessados, representa um custo direto anual de R$ 1,5 bilhão para o tratamento de doenças não transmissíveis no SUS — alertou a pesquisadora e representante da Cátedra Josué de Castro de Sistemas Alimentares Saudáveis e Sustentáveis, da Universidade de São Paulo (USP), Fernanda Marrocos.
Os representantes do governo federal foram unânimes em reconhecer que o país só vai conseguir implantar uma Política Nacional de Abastecimento Popular ouvindo a sociedade e garantindo o orçamento necessário para priorizar esse plano.
O Ministro do Desenvolvimento Agrário, Paulo Teixeira, disse que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem priorizado investimentos e ações para estimular a agricultura familiar através de programas como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), o Programa de Compras Institucionais e a retomada da reforma agrária. Além disso, ele citou a garantia da oferta de crédito por meio do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) e o programa para aquisição de novas máquinas.
— Qual é o programa de compras mais virtuoso da agricultura familiar? É o PAA, é o Programa de Aquisição de Alimentos. Você compra do agricultor familiar e faz a doação naquelas comunidades mais vulneráveis. Nós finalizamos o ano de 2023 com R$ 1 bilhão. Só para vocês terem um dado comparativo, em 2022 foram gastos 60 milhões. E esse é um programa pelo qual nós passamos a comprar dos mais pobres, passamos a comprar de comunidades indígenas, quilombolas, extrativistas, assentados da reforma agrária, mulheres. Quase 75% dos programas no Nordeste são feitos por mulheres. Enfim, o PAA chegou na base, e é por isso que a gente quer a recomposição do seu orçamento em 2024, para ter o mesmo desempenho ou melhor que em 2023 — explicou Teixeira.
Em 2023, segundo dados Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), foram direcionados R$ 364,2 bilhões em crédito para o agronegócio através do Plano Safra, enquanto R$ 71,6 bilhões em crédito foram para a agricultura familiar.
Na visão da presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), Elisabetta Recine,o apoio do poder precisa ficar evidente, inclusive na redução dessas desigualdades orçamentárias:
— É muito importante que a gente saiba que nenhum direito está garantido por si, mas a partir da mobilização, do alerta, da resistência e resiliência dos povos. E o direito à alimentação na nossa Constituição é um desses exemplos. A gente precisa ficar atento para que esse direito não só continue explicitamente no nosso texto constitucional mas que ele vire realidade no cotidiano da política pública, na destinação de orçamento, na articulação de metas.
A superintendente de Desenvolvimento Social e Gestão Pública do BNDES, Ana Cristina Rodrigues da Costa, informou que a entidade tem priorizado cada vez mais a parceria com o cooperativismo de crédito como instrumento de apoio à agricultura familiar sustentável, no Plano Safra. Segundo Ana Cristina, nove entidades já estão credenciadas para que o pequeno produtor tenha mais possibilidade de acesso a linha de crédito:
— Em 2023, houve um resultado histórico para o cooperativismo: três entre as quatro maiores repassadoras do BNDES, pela primeira vez na história, foram as cooperativas de crédito. Com isso, queremos estender ainda mais o Plano Safra com a sua própria revisão voltada tanto para a Região Nordeste quanto também para o fomento à agroecologia, em que queremos buscar, com o aumento dessa nossa capitalidade, via também o cooperativismo de crédito, aumentar a nossa atuação. Cerca de 59% do total de aprovações no Plano Safra foram para as cooperativas. Os bancos cooperativos já aprovaram R$ 3,4 bilhões para mais de 102 mil operações no período 2023/2024.
Ainda participaram da apresentação o secretário-executivo adjunto da Secretaria Geral da Presidência da República, Flavio Camargo Schuch e o presidente da Fundação Banco do Brasil, Kleytton Guimarães Morais. Também estiveram presentes os representantes da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), da Central de Movimentos Populares (CMP) e da Federação Única de Petroleiros (FUP).
Josué Apolônio de Castro nasceu em Recife e teve como último cargo o de embaixador brasileiro junto à ONU. Reconhecido mundialmente por sua luta contra a fome, foi autor de mais de 30 obras, sendoGeografia da Fome: A Fome no Brasil, lançada em 1946, uma das mais destacadas. O livro apresenta um retrato trágico da situação da fome no país e suas raízes profundas. Já a missão que leva o seu nome foi anunciada por movimentos sociais em dezembro de 2023, durante a plenária de encerramento da 6ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar, que aconteceu em Brasília.
Estudioso e ativista, Castro foi um pioneiro nas pesquisas e batalhas para eliminar a desnutrição e o subdesenvolvimento. Depois de muitos anos dedicados ao ensino, chegou a exercer a Presidência do Conselho Executivo da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO). Seu prestígio o levou a receber diversos prêmios, entre os quais a comenda Franklin D. Roosevelt da Academia de Ciências Políticas dos Estados Unidos. Já o Conselho Mundial da Paz lhe ofereceu o Prêmio Internacional da Paz e o governo francês o condecorou como Oficial da Legião de Honra. Foi ainda indicado ao Nobel da Paz nos anos de 1953, 1963, 1964, 1965 e 1970.
Esse lastro, no entanto, não o livrou da perseguição pelo regime militar (1964-1984). Logo após o golpe, teve seus direitos políticos suspensos pela ditadura.
Sua ligação com o tema da fome tem raízes históricas e pessoais. Seu pai migrou para Recife saindo de Cabaceiras, na Paraíba, durante a grande seca de 1877. Sua mãe teve como origem a zona da mata pernambucana. Mestiço, Castro cresceu nas proximidades dos mangues de Recife, em área de mocambos, habitações miseráveis, habitada por retirantes que dividiam o espaço comcaranguejos. Aos 20 anos formou-se na Faculdade de Medicina da Universidade do Rio de Janeiro, atual UFRJ.
Apesar de uma inclinação pela psiquiatria, especializou-se em nutrição e abriu sua clínica no Recife. Contratado por uma fábrica para examinar trabalhadores apontados como preguiçosos, foi taxativo: “A doença desta gente é fome”. Ao ser demitido da emprego, abriu os olhos para a dimensão social da desnutrição e falta de vitalidade, então ocultada por preconceitos ligados à raça e ao clima tropical.
Foi então que, segundo o Projeto Memória, executou uma investigação inédita no Brasil, relacionando a produtividade com a alimentação do trabalhador, que teria sido um dos pliares para a estruturação do salário mínimo. A partir de 1940, participou de todos os projetos governamentais ligados à alimentação, coordenando a implantação dos primeiros restaurantes populares, durante o governo Vargas e outras políticas públicas voltadas á alimentação. em 1946, depois do lançamento de Geografia da Fome, fundou e foi o primeiro diretor do Instituto de Nutrição da Universidade do Brasil, além de efetivar-se, no ano seguinte, como professor de Geografia Humana na Universidade do Brasil. Com Geopolítica da fome, publicado em 1951, transpôs os princípios ecológicos e geográficos do sua primeira obra de sucesso para uma escala da fome mundial. Posicionou-se, assim contra as visões demográficas que interpretavam a fome como resultado da explosão populacional e receitavam o controle da natalidade como solução para o problema. Corrigiu, desse modo, a perspectiva da fome como um fenômeno natural, clareando o contexto biológico, geográfico, cultural e político no qual a fome gera a superpopulação.
Em razão de visões como esta, enfrentou oposição de países desenvolvidos à execução de projetos voltados para o desenvolvimento do terceiro mundo e frustrou-se com ma ação efetiva da agência da ONU nesse campo. Seu ativismo também o levou ao campo político partidário, tendo exercido dois mandatos como Deputado federal pelo antigo PTB, de 1955 a 1962, representando o Estado de Pernambuco. Apresentou diversos projetos relacionados a questões agrárias, educacionais, culturais e econômicas. Um deles foi o de regulamentação da profissão de nutricionista, que dispõe sobre o ensino superior de Nutrição. Outro foi o de um plano de reforma agrária. Em 1963, tornou-se embaixador brasileiro junto à sede europeia da Organização das Nações Unidas, em Genebra. Na época teve projeção internacional e dialogava com chefes de Estado e monarcas. Suas palestras chegaram areunir plateias de até 3 500 pessoas.
Impedido de morar no Brasil pela ditadura, exilou-se em Pairs onde lecionou até a morte no Centro Universitário de Vincennes (Universidade de Paris VIII) e fundou e dirigiu o Centro Internacional para o Desenvolvimento.
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